27 outubro, 2008

A propósito do anjo-da-guarda (Parte II)

Não há fundamento para a crença em 'anjo-da-guarda' no sentido de que cada crente é assistido por um anjo que o protege.
A Escritura menciona claramente que Deus envia os Seus anjos para a nossa protecção
Em Dezembro de 2006, Novas de Alegria publicou o artigo da nossa autoria intitulado Os Anjos no Nascimento de Jesus. Apesar disso era intenção do articulista redigir novo texto para o corrente mês, sobre a vinda do Messias a este planeta (efectivada há dois milénios), e a manifestação sobrenatural de seres angélicos, quer na natividade do Salvador, quer durante a génese e vivência da Igreja Primitiva.
O facto de haver saído a lume na revista de Novembro p.p., a parte inicial duma reflexão bíblica acerca do anjo-da-guarda, que entretanto se conclui, impediu-nos de concretizar esse desejo.
No número anterior considerámos a passagem não testamentária de Actos 12:15 a propósito da existência ou não de um anjo-custódio exclusivo de cada cristão devoto, por consequência um anjo que proteja a vida de cada crente. Agora meditaremos nas palavras de Jesus Cristo exaradas no Evangelho de Mateus 18:10, visto serem os principais passos das Escrituras utilizadas na análise do tema proposto. Nesta última citação da Palavra do Senhor lê-se: "Vede, não desprezeis algum destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos céus sempre vêem a face de meu Pai que está nos céus."
SIGNIFICADO DO VOCÁBULO "PEQUENINOS" NA LINGUAGEM DE JESUS CRISTO
Os "pequeninos" referidos nc capítulo 18 de Mateus são os crentes semelhantes a crianças (num certo sentido), pessoas convertidas a Jesus: cristãos simples, humildes de coração, e não indivíduos pretensiosos, presunçosos, altivos (Mt 18:1-4; M: 9:33-37). Quem desprezar esses pequeninos por causa da sua fé; quer escandalizar os tais que acreditam er™ Cristo (provocando sua quedai espiritual) sofrerá as consequências (Ma 18:6,7,10,14; Mc 9:24). O Senhor Jesus acrescenta que Deus auxilia os Seus] servos através do ministério dos santos anjos, e não apenas directamente.
O Evangelho de Lucas 9:46,47 revela que houve uma discussão entre esta ] discípulos do divino Mestre a respeito! de qual deles seria o maior, o mas importante. Jesus, conhecendo os seus pensamentos, deu-lhes uma magistral} lição prática: colocou uma criança em pé junto de Si, e disse aos apóstolos "Qualquer que receber este menino meu nome, recebe-me a mim; e qualquer que me recebe a mim, recebe o que me enviou [Deus Pai]; porque aquele que entre vós for o menor, esse mesmo é grande" (Lc 9:48). Saliente-se que as questões da superioridade, da categoria social, da posição de privilégio levantaram-se noutras ocasiões entre os seguidores de Cristo (Mt 20:20-28; Mc 10:35-45; Lc 22:24-27).
Na sua exegese a Mateus 18:10, escreve John A. Broadus: "Pequeninos aqui, designa, não meninos, mas pessoas semelhantes a meninos, como nos versículos 3 e 6; assim entendiam os Pais [da Igreja], igualmente Calvino e Beza, e assim entendem quase todos os comentadores modernos. Os homens em geral são inclinados a desprezar os cristãos, porque contam em grande maioria pessoas de condição humilde, pobres, e muitas vezes ignorantes (I Co 1:26); e a sua humildade, ainda que é uma das mais belas características humanas, é considerada por pessoas religiosas e orgulhosas, apenas como incapacidade e baixeza (...). Embora humildes na estima do mundo, os crentes têm os anjos como seus assistentes, enviados para servirem a Deus em seu favor (Hb 1:14), e estes anjos, enviados a servi-los, ocupam no Céu a mais alta dignidade e consideração, semelhante à das pessoas admitidas à presença de um monarca, com a faculdade de vê-lo, não uma vez, mas continuamente (...). Não há aqui [em Mt 18:10] suficiente apoio para a ideia comum de 'anjos-da-guarda', um para cada pessoa; simplesmente é dito em relação aos crentes como uma classe, que há anjos, que são seus anjos; mas não há nada aqui, ou noutro lugar que mostre que um anjo tenha o encargo pessoal de um crente (...)." '
TEORIAS VÁRIAS RELATIVAMENTE AOS ANJOS-DA-GUARDA
Ebenézer Soares Ferreira assevera o seguinte num dos seus livros a respeito do anjo-da-guarda, ao considerar o verseto de Mateus 18:10: '"Seus anjos'. Surgiu desta expressão a teoria de que cada pessoa tem o seu anjo-da-guarda. Basílio [329-379 d.C] assim doutrina: 'Cada um dos fiéis tem ao seu lado um anjo como educador e pastor que dirige a sua vida' (Adv. Eunomium lll.l). Jerónimo [347-420 d.C] comenta este trecho assim: 'Quão grande é a dignidade das almas humanas, que cada uma delas, desde o dia do nascimento tem um anjo para protegê-la!' (cf. S. Gregório Taumaturgo, Discurso de Gratidão a Orígenes c. 4; S. th. I. 113 1.8)."
Continua Ebenézer: "Houve também uma teoria que ensinava que cada pessoa tinha a acompanhá-la desde o nascimento um anjo Tau para a incitar a pecar. Patrocinava — ta ideia Pastor de Hermas, Orígenes, Gregório. Na Idade Média, Pedro Lombardo. Entre os teólogos modernos aceita-a Suaréz (...). Mullins declara que não há fundamento para a crença em 'anjo-da-guarda' no sentido de que cada crente é assistido por um anjo que o protege (The Christian Religião in its Doctrinal Expression, p. 278). O Dr. J. P Boyce na sua Abstract of Systematic Theology, p. 179, acentua: 'Guiados por fábulas rabínicas e guiados por ideias peculiares da filosofia oriental, alguns têm concebido que sobre cada pessoa nesta vida há um anjo -vigia para guardá-lo e protegê-lo do mal (...). Que tais ideias existiam entre os Judeus e que prevaleceram também entre os cristãos primitivos, pode admitir-se; mas autoridade escriturística [bíblica] para ela falta" (Apud Thomas Paul Simmons, Um Estudo Sistemático da Doutrina Bíblica, I 39)." 2
CADA FILHO DE DEUS TEM O SEU PRÓPRIO ANJO-DA-GUARDA?
Eis diversas frases de pensadores cristãos sobre Mateus 18:10, relativas ao anjo-da-guarda: I) "Não prova que cada criança, ou que cada crente, tem o seu anjo -guardião pessoal" (Charles Hodge, Teologia Sistemática); 2) "É uma alusão aos anjos-da-guarda que acompanham toda a criança, pelo menos toda a criança piedosa" (F. Davidson, 0 Novo Comentário da Bíblia); 3) "Desprezar as crianças é acto insensato, pois elas são representadas perante o Pai por seus 'anjos-da-guarda'" (S.E. McNair, A Bíblia Explicada); 4) "Alguns formam a doutrina de 'anjos protectores', a qual ensina que cada crente tem um anjo especial para guardá-lo e protegê-lo (...). Não podemos ser dogmáticos sobre o assunto" (Myer Pearlman, Conhecendo as Doutrinas da Bíblia); 5) "Os anjos (...) transmitem mensagens do Céu à Terra, e vigiam sobre nós dia e noite" (Ann Spangler, Encontros com Anjos); 6) "Nas palavras de Cristo está subentendido o facto de que cada criança tem um anjo protector" (Marilynn e William Webber, Anjos); 7) "Não devemos pensar que haja um anjo só ao nosso serviço, um guardador invisível que esteja sempre a proteger-nos dos perigos ocultos, advertindo-nos dos precipícios ou riscos, corrigindo nossos equívocos, etc." (Donald Turner, A Doutrina dos Anjos e do Homem).
Wayne Grudem tem esta opinião concernente ao por vezes denominado anjo custódio: "A Escritura menciona claramente que Deus envia os Seus anjos para a nossa protecção: 'Porque a seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para que o protejam em todos os seus caminhos; com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra' (SI 91:11,12-NVI). Mas algumas pessoas vão além dessa ideia de protecção geral e pensam que Deus dá um 'anjo-da-guarda' específico para cada indivíduo no mundo, ou ao menos para cada cristão. As palavras de Jesus a respeito dos pequeninos têm servido de apoio para essa ideia: '(...). Pois eu lhes digo que os anjos deles nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai celeste' (Mt 18:10-NVI). Contudo, nosso Senhor pode estar dizendo que os anjos designados para a tarefa de proteger as criancinhas têm pronto acesso à presença de Deus. (Para usar uma analogia desportiva, os anjos podem valer-se da marcação 'por zona' em vez da marcação 'homem a homem'). Quando os discípulos em Actos 12:15 dizem que o 'anjo' de Pedro devia estar batendo à porta, isso não implica necessariamente na crença do anjo-da-guarda individual. Poderia ser que um anjo estivesse guardando ou tomando conta de Pedro naquela situação específica. Parece não haver, entretanto, qualquer apoio convincente para a ideia de 'anjos-da-guarda' individuais no texto da Escritura. Mas cremos que os anjos em geral têm a tarefa de proteger o povo de Deus." 3
Em resumo, acreditamos que o Senhor defende-nos, guarda-nos Directamente porem neste caso através dos Seus anjos. Isso não significa que cada crente tem um ser angélico à sua disposição para o auxiliar. De resto, o Criador, o Deus Altíssimo, promete na Sua Palavra estar connosco e em nós. O nosso corpo é o templo do Espírito Santo, o habitáculo do Deus vivo (SI 46:7,11; Mt 1:23; 18:20; 28:20; João 14:16,17; I Co 6:19).
Concordamos com João Calvino, quando escreve na sua notável obra As Instituías da Religião Cristã: "Não me aventuraria a asseverar que um anjo é designado para cada cristão como seu guardião; porque não vejo que possa ser provado pelas Escrituras. Mas o certo é que não somente um anjo e sim todos eles, vigiam pela nossa segurança de comum acordo; e diz-se acerca deles que mais se regozijam a respeito de um só pecador que se arrepende do que sobre noventa e nove justos que não precisam de arrependimento."
Autor do Artigo .
Fernando Martins

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