18 maio, 2008

Nem Sempre era o deserto.

Nem sempre era o deserto. Às vezes, apenas o vento que estendia o calor pegadiço e transportava a subtileza dos grãos de areia.
Chegava senti-lo na claridade que se agitava nas cortinas da porta; chegava vê-lo mexer nos frutos do sicómoro, para Perez recordar que, entre ele e a casa longínqua, a distância era o deserto.
-Este vento volta a trazer-me pequenos cheiros - exclamava. Mas o que doía demasiadamente a Perez, era a recordação do que fora para si a casa do Pai.
-Um limite - considerou, muitas vezes. -O limite foi o que me levou a abandoná-la, há anos.
Agora a casa era mais do que isso. Sentia bem fundo, sentia-o em tudo. - A minha casa é uma amputação infeliz da minha memória. - Dizia Perez a alguns amigos, quando estes, raros já, lhe permitiam falar do passado.
No momento em que partiu, Perez desejava qualquer sítio que fosse o contrário de um lar. Foi tudo quanto pôde exprimir na atitude audaciosa de rogar a sua parte da herança, um escondido desejo de se livrar do sistema de educação do Pai.
Um dia, porque a aventura se avo ¬ lumava nos seus olhos e no seu coração, chegou mesmo a dizer:
-As minhas relações consigo, meu Pai, começam a não estar boas.
-Eis aí algo que me tem vindo a entristecer - respondeu-lhe o Pai -, porque, em verdade, o que mais desejo é um bom relacionamento contigo, mas que não coloque em causa a obediência.
Perez, contudo, jamais tinha posto em causa o papel patriarcal do progenitor, e costumava sublinhar isso naquelas conversas pequenas.
Na realidade, tudo como pretexto se confinava a querer abandonar. -Partir para uma terra longínqua - era o sonho que Perez trazia, com frequência, à sua boca, e que já não escondia de seu irmão e até de alguns jornaleiros da casa paterna.
O Pai. quando sentiu rumores, falou. - Enquanto estiveres sob este telhado, onde tudo te pertence, quero que saibas o que pedem o meu amor e o meu cuidado. E pedia-lhe apenas obediência. Uma vez falou em autoridade e disse: - A minha autoridade será, como tem sido até hoje, o teu limite.
Perez, ao lembrar-se destas palavras, considerou que o seu Pai não lhe pedia, de facto, obediência cega, mas impunha-lhe limitações, conveniências. Tinha, no entanto, a compaixão de não dizer essas coisas, senão no seu silêncio, para não magoar. E, por vezes, às refeições em que compartilhavam os silêncios, com o pão de trigo e as lentilhas, os fantasmas de Perez não resistiam.
- As tradições - dizia então -pegam-se-me à roupa desde a infância, aos meus objectos de uso pessoal, e, pior do que isto, começam a colar-se às minhas ideias. Desejava despojar-se do domínio das leis. dos costumes, das cerimónias; disse-o, certo dia, ao seu irmão. - Quero despojar-me das visões a que me obrigam.
-Ribbono Shel Olom - exclamou o irmão. - Senhor do Universo! Que estás a dizer? - repetia e perguntava o irmão.
-Isto, tudo quanto querem de mim, não passa de um comportamento. Creio em Deus e na Torah. Oro três vezes ao dia, preservo na mente a libertação do cativeiro, como apenas comida pura, observo o Sabbath... - Não observas - inter-rompeu-o o irmão - não observas que o nosso Pai é um anjo de Deus.
Perez sabia, com certeza, que seu Pai era um anjo de Deus, que atravessaria até os sete portões do inferno para que nada faltasse aos filhos. Todo este paternalismo constrangia-o, porém. E o ter de conduzir-se conforme as tradições. - Ouve, meu irmão. O que o Pai nos exige é que sejamos tudo de acordo com o Talmude.
Seiscentos e treze mandamentos, modos judaicos de ver as coisas, xenofobia, eram alguns dos limites, a consagração a Jeová do Destino colectivo, a forma de viver. Perez precisava de partir o mais depressa possível. - Aqui - disse ao irmão -confiamos todos em coisas, em sinais, em estatutos. Agora quero confiar em mim mesmo.
Perez não era, de tacto, um ortodoxo, embora procurasse respeitar a regra de ouro, o cerne do comportamento social do judaísmo, - Não fazer aos outros o que não quero que os outros me façam. Ainda procuro cumprir isto - respondeu, naquela manhã, ao irmão. - No entanto, estás decidido a ir-te embora - replicou o irmão -, a deixares o velho Pai. Vais fazer uma coisa que ele não faria nunca: abandonar.
O velho Pai tinha algumas palavras nos olhos que não conseguia articular. Perez tornara clara a sua decisão. - Pai, dá-me a parte da fazenda que me pertence.
Dias depois, partiria para uma terra distante. A natureza pura, sem moldagens, sem peles de cordeiro, sem o fogo dos holocaustos, o ar com novos cheiros, tornaram-se o alvo de Perez. - Vou ser eu a minha própria aventura - filosofou para o Pai e para o irmão, com uma alegria irresponsável.
-Vai! Conhecerás muita gente -disse, entre lágrimas, o Pai -. Perguntar-lhe-ás todos os pormenores da sua vida, o preço dos bezerros do ceva douro, os nomes pelos quais se chama essa gente, quanto gasta para ter alegria. Naquela hora, os olhos do Pai amavam mais e eram testemunhos dos céus. - Quem se regozijará, nos lugares para onde vais, na nudez dos seus cordeiros? -perguntou, finalmente, o Pai. Sem compreender. Perez deixava sem resposta a casa paterna, como se deixasse um rebanho', as regras, os constrangimentos, os caminhos sempre marcados.
Ali estava, agora, perto de cair em mais uma noite. Para trás ficaram, havia muito tempo, a fluidez dos horizontes, o silêncio das claridades, o deserto cheio de sol para nada. Até a vida sem regras, a dissipação.
A manhã estava próxima, Perez sentar-se ia, novamente, entre os porcos, guardando da impureza os pensamentos. Mas nesse dia, subitamente, a indignidade surgiu e fê-lo cair em si. - Meu Pai continuará a prantear-me, como se o fizesse por um unigénito? * - inquiriu Perez, dando a impressão de falar com alguém. - Quando parti, bastaria um olhar indiferente do velho e eu não teria hoje pesadelos. Falaríamos linguagens diferentes - exclamou Perez em voz sumida -, assim fala-mos ainda a do amor, de um amor traído...
Porque ignorava se teria o amor do Pai, Perez decidiu experimentar a justiça. - Levantar-me-ei, e irei ter com meu Pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti; já não sou digno de ser chamado teu filho.
Pela primeira vez reflectia nas palavras que iria ouvir do seu Pai. Até se anteciparia, reconhecendo, com humildade, o último lugar. - Não sou digno de ser chamado filho -repetiu -. faze-me como um dos teus jornaleiros.
Perez desejava, acima de tudo, voltar para ocupar um espaço no velho coração de seu Pai. - «O amor afastará aquilo que eu fui» - cantou, em surdina -. Pela primeira vez vou colocar o meu coração acima dos ritos, a minha obediência acima da minha virtude.
- Os meus vestidos estão rotos -afirmou Perez, voltando-se para si mesmo -, nem sequer disponho do albornoz ismaelita que o meu antigo patrão me deu. Meu Deus, onde teria ficado, perdido nos dias, o meu talit, esse velho xale franjado de quatro cantos? Perez estava cansado, descalço, a poeira enovelava as dores que, como lâminas, lhe percorriam os pés. Porém, sem piedade por si, o que desejava era divisar, ao longe, a sua antiga casa. - Ainda que me recorde do meu velho Pai, da sua figura austera quando me acenava adeus, envelhecido e curvado de silêncios -pensou.
Já perto da casa, os silêncios romper-se-iam. Diversas vezes o Pai pensara naquele momento, quando abraçou Perez, apesar da velhice o cansar quando correu ao encontro do filho. Várias vezes preparara a sua emoção, com as palavras. -Trazei depressa o melhor vestido e vesti-lho, ponham-lhe também um anel no dedo e calcem-lhe sandálias - gritou o Pai para o interior da casa. Esta recobria-se já de alegrias antigas, quando o velho deu as últimas ordens.
Era necessário que tudo começasse assim. Esta afirmação do Pai não fazia o seu filho mais velho desencostar-se da ombreira da porta. - Não fiques aí parado - implorou. Parecia, no entanto, que aquelas ombreiras eram demasiado estreitas para o orgulho do irmão do reencontrado Perez. Parecia não querer lançar-se num sacrifício de amor, em que temia colocar a sua primogenitura.
- Não fiques aí parado - repetiu, suavemente, o Pai . - Essa porta, não poderá mais desunir-nos.
Autor do ARTIGO:
André Gide

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