14 maio, 2008

De Geração em Geração

Agora que concluíra o programa terapêutico, e se vira finalmente Wlivre do hábito de consumo de heroína e de álcool em excesso, tinha diante de si outras metas igualmente desafiantes a alcançar. Uma delas era a de ser pai, um bom pai. O filho, fruto de uma relação passageira, sempre vivera a cargo da mãe, sua companheira de outros tempos. Praticamente não se conheciam. Sim, chegara agora a altura de assumir o seu papel. Ao entusiasmo por esta nova etapa não deixava de juntar-se algum receio. Como é que se construía uma relação com uma criança, a partir de quase mais nada senão a certeza de um I vínculo biológico - a paternidade? E havia outro factor que alimentava em si um sentido de , inadequação:"É que eu nunca tive um pai que brincasse comigo...".
FLUXOS DE DOR
O nosso sentido de competência como pais é uma área delicada de considerar. Que progenitores saberemos ser? Será que cumprimos o papel que Deus nos confiou? Em que medida a nossa própria infância e a adolescência nos condicionam no exercício da função de pai ou de mãe? É importante pararmos para pensar nisso. É comum que um pai que maltrate tenha sido, ele próprio, uma criança maltratada. Por outro lado, todos sabemos que muitos pedófilos foram crianças sexualmente abusadas. São conhecidas gerações sucessivas de alcoólicos. Problemas transgeracionais, dizemos nós. Quer queiramos quer não, todos estamos envolvidos num fluxo transgeracional - transmissão inevitável de princípios, valores, práticas, formas de (des)investimento afectivo e de (dis)funcionalidade familiar.. O que é que estamos a passar aos nossos filhos? Teremos nós o direito de transpor o "preço" das nossas eventuais carências e sofrimentos à geração seguinte? "O meu pai já era assim" ou "Também fui criado assim" serão limitações inalteráveis? Como e quando será possível travar esses fluxos de dor?
Jónatas teve um pai violento. Ele conhecia bem a intenção que o progenitor alimentava diariamente de matar David e teve ocasião de observar como ele perfidamente delineou sucessivas estratégias nesse sentido. Desde cedo observava a lança de que o pai se fazia sempre acompanhar. E nunca terá esquecido os dois momentos em que o pai manifestou a intenção de o matar. Sim, de matar Jónatas, o seu próprio filho. Uma vez foi no campo, porque comera um pouco de mel que encontrara, não tendo ouvido a ordem de seu pai de que ninguém deveria comer o que quer que fosse. Valeu-lhe o povo, que intercedeu em seu favor.
A outra ocasião sucedeu dentro de casa, à hora do jantar. Face a uma discussão sobre a ausência de David, o pai tentou atingi-lo com a lança. Contudo, Jónatas foi das pessoas mais ternas e dispostas a amar que encontramos nas páginas da Bíblia. O pai não foi uma referência de amor mas isso não o limitou. Ele foi um outro exemplo a oferecer à geração seguinte.
Todos nós, tenhamos maior ou menor consciência disso, projectamos a nossa infância nos nossos filhos. E é comum esforçarmo-nos para lhes proporcionar uma vida melhor do que a que tivemos. Tal fica expresso, por exemplo, na satisfação que nos invade ao oferecermos a um filho um objecto ou uma oportunidade a que nós, com a sua idade, não tivemos acesso, ou vermos um filho a alcançar um nível de desempenho escolar ou profissional com que sonhámos mas não chegámos a concretizar. São inúmeras as circunstâncias em que nos move a expectativa de que "eu não tive, mas ele há-de ter, eu não alcancei mas ele há-de alcançar, eu sofri mas ele não há-de sofrer..." Tecemos sonhos para as vidas dos nossos filhos com as fibras das matérias-primas que consideramos valiosas e lutamos para tornar acessíveis.
De facto, investir nos nossos filhos é ajudá-los a concretizar o propósito de Deus para as suas vidas. É acompanhá-los na sua corrida, dentro daquilo que nos é possível, quantas vezes tentando suavizar o caminho, refrescando o ânimo, renovando forças.
AMOR INCONDICIONAL
Contudo, os conflitos que ocasionalmente surgem na dinâmica relacional tendem a sugar toda a energia e a disponibilidade da comunicação. Questionamo-nos sobre a melhor estratégia a adoptar e inquieta-nos a incerteza da escolha. O que sobrará daí para um filho em dificuldade? Para além dos erros ortográficos, a dificuldade em memorizar a tabuada, uma enurese persistente, a hiperactividade, a lentidão ou a dificuldade em ultrapassar uma falha, há uma necessidade vital, e muito mais importante para a sua estabilidade pessoal, de se sentir aceite e amado, tal como é ou consegue ser. Se não encontrar esse acolhimento dentro de casa, onde deverá procurá-lo? Antes de tudo o mais, importa que os nossos filhos entendam que temos amor incondicional para lhes oferecer. Não sendo perfeitos, estaremos dispostos a caminhar com eles quando correrem e quando caírem. Nas suas forças e fragilidades. Saberemos, no momento da falha, "rejeitar o pecado mas amar o pecador". Estaremos dispostos a tomar a iniciativa, a caminhar a segunda milha. É esse amor que transforma. Não foi assim que Deus fez connosco?
Ser pai e ser mãe é muito mais que um facto biológico. É a responsabilidade de participar no processo de construção de identidade, de estrutura afectiva, de uma hierarquia de valores que acompanharão os nossos filhos. Se existirem na nossa vida, como pais, áreas pessoais perturbadas, empenhemo-nos em trabalhá-las e resolvê-las, por nós e por eles. É verdade que a vida não é perfeita mas não nos conformemos com o perpetuar de uma forma atribulada/negligenciada de viver. A Palavra de Deus promete:".. .as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo..." (I Coríntios 5:17b ). De meios familiares perturbados Deus está a levantar novas gerações dedicadas ao Seu Nome, providas de capacidades e dons que não tiveram o privilégio de observar no seu lar de origem. São "Jónatas" comprometidos em ser bênção e inspiração, independentemente dos modelos de identificação que (não) tiveram. Tal sucede porque para Deus todas as coisas são possíveis! E conversámos sobre brincadeiras infantis: fazer corridas, jogar à bola, desenhar... afinal havia um mundo de oportunidades de se divertirem e construírem juntos a relação pai - filho. Se ele queria e contava com a ajuda de Deus, nada o iria limitar. Inspiradora foi a amizade que se construiu gradualmente entre um homem que não aprendera a brincar e um rapazinho ansioso por ter pai..

Autor do Artigo;
Dra Bertina Cóias Tomé

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