O HOMEM EM ESTADO DE NECESSIDADE PERANTE DEUS
Foi um bispo do catolicismo tradicionalista, Mons. RicB Williamson, que, numa Conferência em Quebec, em "M lançou um olhar e uma exegese ditos católicos sobre o Hafl de Shakespeare.
Entre uma análise inatacável do ponto de vista religioso, deixou escapar um de já vou, afirmando que "os clássicos literários nos desvendam a profundeza da natureza humana e as causas da sociedade moderna".
Mas o termo "clássicos literários" é equívoco, nem sempre os grandes romances foram de tese e mergulharam fundo na psicologia humana. Nem todos terão ajuizado bem as forças tectónicas que se exercem no interior do homem.
Seja com for, a peça de teatro Hamlet (cerca de 1603), é uma Tragédia psicológica e nada romântica, e traz esse e outros problemas.
O Hamlet era então um ícone mesmo antes de William Shakespeare o apresentar como uma personagem trágica, sonhador sentimental, vítima de melancolia excessiva.
Sexto Gramático, historiador dinamarquês, havia escrito entre 1180-1208 uma Tragédia de Hamlet originada na Dinamarca, tratava-se de uma História Danica. A história de um Hamlet, que vem assim de muito longe das lendas escandinavas. Shakespeare, porém, ao recriar o seu Hamlet, fez dele personagem popular, e no entanto fundacional dramas interiores que se abrem da Renascença, 1 do humanismo, à modernidade.
Com códigos que ferem o princípio cristão de mal com o bem - a negação do olho por olho com ao ensinamentos de Cristo -, por um lado, e, porá códigos que marcam a intervenção da consciência! diante de Deus. Assim, o Príncipe da Dinamarca - o Dinamarca Melancólico - é um herói negativo, ml um anti-herói. O vilão de palco será a o rei Cláudio. A tragédia com crime inconclusivo suicídio, loucura, amor I uma fixação edipiana do jovem primeiro e um Espectro do velho pai assassino uma recorrência pagã ?-, que aparece m Hamlet, acima de tudo assume o ai contemporâneo então da "vingança". I O código da vingança tanto cal seu protelamento, deram-lhe resolver universal, sobretudo no célebre monologo (To be or...), nas alusões à psicologia! e até nos aspectos visuais das sucessivas encenações da peça. O que é importante também para com personagem. Nunca foi por acaso que em ali destas, o Hamlet nos surge a falar com uma cavei™ as mãos - o apelo à morte mais do que a sua negação
O SOLILÓQUIO DE HAMLET,
ACTO IV - O CÓDIGO DA VINGANÇA
"Como tudo se volta contra mim / Espicaçando ■ vingança que tarda"
É paradoxalmente nesta fala do Acto 4o, o chamado solilóquio do Código de Vingança, sempre sustido por uma consciência religiosa, que o Hamlet deixa entrever uma paráfrase do Salmo VIII, qual recurso à análise ontológica do ser humano como Criatura de Deus Todo-Poderoso ("Quem de tão larga visão nos criou"):
"Que é o homem para quem o bem supremo, / O grande negócio, é comer e dormir? / Um animal e nada mais."
Sem contribuir objectivamente para verbalizar um adjectivo como o «estóico», no sentido grego de uma virtude, criou uma perplexidade intemporal diante de acontecimentos, do destino, da morte, que se resolve entre a resignação ou a acção.
E, assim, as interpretações vão no sentido da duplicidade de carácter do príncipe, ao ponto de «haver» «dois Hamlet» na peça. Um jovem sensível e doce, e outro bárbaro, cruel, que mata e manda matar e com requintes verbais desfaz a esperança do seu amor por Ofélia.
A QUESTÃO: HOMEM DE DUPLO ÂNIMO
Dilema moral que transcende a meditação meramente pessoal, as palavras do monólogo de Hamlet retratam a humanidade, são um solilóquio carregado de universalidade.
É universal a pergunta de Hamlet: "Ser ou não ser, eis a questão", o "tudo ou nada", como defendeu Miguel de Unamuno, ou a tal perplexidade de quem a si mesmo se pergunta se mais vale combater o Mal ou fugir dele através da Morte ou do sono.
"Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre em espírito viver
Sofrendo os golpes e as frechadas da afrontosa sorte
Ou armas tomar contra um mar de penas.
Dar-lhes um fim: morrer, dormir...
Só isso e, por tal sono, dizer que acabaram Penas do coração e os milhões de choques naturais Herdados com a carne? Será final
A desejar ardentemente... Morrer, dormir;
Dormir, sonhar talvez..."
Segundo uma análise subtil da personalidade, magnificente na sua inconsistência, que esta célebre fala revela, por um lado a resignação, por outro a revolta, o Hamlet é um herói sem actos. E numa área - a religiosa - que mais nos interessa, da análise psicológica não se pode nem deve subtrair o sentimento da religião. E perguntamo-nos:
Por que razão Shakespeare coloca na peça uma referência indirecta à Reforma luterana? Não é despiciendo e pode até atingir uma proposta histórica objectiva, a alusão aos estudos do Príncipe em Wittenberg, local chave do começo do Protestantismo.
Na peça (I acto, II Cena) Hamlet admira-se que o
seu colega de estudos Horácio esteja em Elsenor, longe da Universidade: "Mas, realmente, que fazeis longe de Wittenberg?" Foi nesta Universidade que Lutero ensinou filosofia e foi professor da Sagrada Escritura em 1508, e foi nas portas do templo da cidade que afixou as 95 Teses contra as Indulgências, em 1517.
Esta referência identifica-se com a importância do pensamento que corria no mundo anglo-saxónico pela plena força de uma "nova filosofia", o luteranismo, que o Hamlet poderia trazer para a católica Elsenor. Ele regressaria dessa Universidade luterana com a ideia protestante da responsabilidade individual diante de Deus na sua mente.
Na realidade, há uma moral protestante a percorrer uma boa parte da corrente de consciência da Peça que parece permitir uma vingança contra quem ousou tirar a vida ao rei, que é o ministro de Deus na terra segundo a teologia paulina. Todavia, a mesma moral não permitirá então que se subtraia a vida a Cláudio, o rei -substituto da Dinamarca.
A CONSCIÊNCIA TRISTE DE HAMLET
O Hamlet não foi um homem concreto, um homem de carne e osso, parafraseando a expressão de Miguel de Unamuno, mas encarnou nele o homem tanto do século XVI como o do século XX, o homem em crise de mudança, e, do ponto de vista bíblico, o homem com consciência em estado de auto-crítica, segundo o apóstolo Paulo.
O "Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço".
Atente-se na comparação:
"Quem me livrará do corpo desta morte" (Paulo aos Romanos 7:19,24).
"Oh pudesse eu livrar-me desta deusa carne em que nasci!" (Hamlet).
O homem em estado de necessidade perante Deus, exibe no entanto os propósitos que caracterizam o ser humano, variáveis e contraditórios.
Mas o Hamlet foi também um homem de máscaras . A sua mudança de máscaras reflectia o câmbio seus diversos humores, do seu carácter, que envolve várias facetas do ser humano. No fundo, o Hamlet é homem inconsistente.
No Hamlet parece que do foro psicológico a realidade talvez não seja anterior à ficção. O quê terá sido anterior a quê?
A história – lenda danica, de Sexto Gramático, ergueu um ícone, um paradigma para levar a cabo a vingança. No entanto, como já se escreveu, o Hamlet é mais do que uma simples peça de vingança, porque seu protagonista não é o simples executor dessa vingança.
De facto, o príncipe da Dinamarca é um homem que se investiga, se analisa, hesita muito antes de agir, reflecte sobre seus actos e sobre o sentido de sua existência. O Hamlet é um homem fragmentado. Existem nele fulgores diversos, mas também ruínas. E o balanço moral é difícil. A integridade de Hamlet começa a desconstrução com a loucura, a insanidade de Hamlefl advém-lhe de alimentar ódio ao assassino do seu Pai, q rei titular do trono da Dinamarca. E nessa tarefa anti-cristão se perde.
Autor do Artigo :
João Tomaz Parreira
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